sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Henrique Tenreiro, o "benemérito" do regime

A actividade pesqueira nas águas revoltas e gélidas dos mares da Terra Nova e Gronelândia era muito dura, dureza essa que não era repartida de igual modo por toda a tripulação das frotas que ali operavam, existindo, no caso dos navios portugueses, privilégios tão diferenciados que se assemelhavam (com as devidas diferenças, claro!) à vida faustosa da minoria dos membros da corte na época medieval em relação aos da maioria dos membros da plebe, condições de vida e de trabalho que foram substancialmente alteradas com a revolução burguesa do 25 de Abril de 1974.
Nos vários navios que interviam naquela “arte”, embarcaram também vários ex-alunos da Fragata D. Fernando II e Glória nas mais diversas actividades e profissões, e são eles e outros seus companheiros de campanha, que testemunham uma realidade muitas vezes desconhecida de muitos de nós, cujo relato impressiona quem da vida sempre se pautou pela igualdade de direitos, pelo respeito e dignidade do ser humano.
Devido à vida dura que levavam, mais concretamente os pescadores da frota pesqueira do bacalhau, devido ao mau tempo e às péssimas e duríssimas condições de trabalho, esta “arte” começou a ressentir-se da afluência de nova mão-de-obra, havendo necessidade por parte dos responsáveis que mais dela beneficiavam de inverter esta situação, tendo em conta os interesses que estavam envolvidos à volta deste negócio altamente rentável mas sempre mal pago.
Precisamente com essa preocupação, enquanto decorria a Segunda Grande Guerra Mundial, surgiu a Obra Social da Fragata D. Fernando II e Glória (…) que partiu de uma ideia de a utilizar como centro ou sede de uma instituição de interesse social, por parte de individualidades tais como o Capitão-de-mar-e-Guerra Nuno Frederico de Brion, do embaixador de Portugal em Londres, Doutor Pedro Teotónio Pereira e do então Capitão-Tenente Henrique dos Santos Tenreiro[1](…), ideia essa que veio precisamente por acabar de cumprir um duplo objectivo ou seja;
Por um lado, a sociedade da altura (que tinha um conceito de solidariedade muito retrógrado e mais vocacionado para a “caridadezinha”, sem contudo criar condições para alterar o modo de vida das pessoas mais necessitadas porque isso alimentava o seu ego de benemérito) lhes ficaria muito grata por a bordo daquela velha Nau se conseguir albergar (ou esconder dessa mesma sociedade) crianças carenciadas, mas, por outro, criava-se também ali uma espécie de “viveiro” de futuros pescadores, que futuramente iriam preencher a escassez de mão-de-obra com que a frota pesqueira se debatia naquela época.
Não é por acaso que nessa altura, o regime de então (com a colaboração interessada e a influência de Henrique Tenreiro e de outros armadores) faz publicar um Decreto do Lei que isenta a participação na Guerra Colonial de quem viesse a participar na pesca do bacalhau, de forma a aumentar o efectivo a bordo dos pesqueiros, apesar de quem a ele viesse aderir desconhecer a vida duríssima que iria enfrentar, geralmente jovens de famílias habituadas à vida do mar oriundos de regiões do litoral (Nazaré, Ílhavo, Póvoa do Varzim) mas também do interior, que viviam com parcos recursos e viam naquele modo de vida uma forma de melhorar a sua existência.
Com a cumplicidade das autoridades do regime que beneficiavam e dominavam todo o comércio da pesca do bacalhau (dado que alguns deles também eram proprietários de alguns desses navios) as condições de vida a bordo dos pesqueiros antes do 25 de Abril eram tão desiguais entre a tripulação, que não seria possível ao cidadão comum imaginar esta diferenciação tão desumana.
Enquanto que ao Comandante de bordo e restantes oficiais (incluindo especialidades ligadas às máquinas e outras) as refeições diárias eram compostas por sopa, prato de peixe, prato de carne e fruta, aos pescadores era servido ao almoço e jantar apenas sopa e um único prato (geralmente peixe) tendo direito numa das refeições a um prato de carne apenas às Quintas-feiras e Domingos, composto por chispe com feijão ou carne salgada conservada em barricas de madeira.
Aos camarotes dos primeiros (que exibiam alguma comodidade apesar da exiguidade do espaço) eram fornecidos pela Companhia Armadora os colchões, enquanto que aos pescadores era-lhes exigido que o trouxessem de casa, se quisessem ter as comodidades no fundo dos porões onde dormiam amontoados, convivendo de braço dado com a insalubridade.
Na hora da faina e do puxar as redes para bordo, com a ondulação forte, com temperaturas que rondavam os 15 e 25 graus negativos, com ventos frios a flagelar o navio e a soprar-lhes na face por vezes gretada, protegida por uma barba espessa coberta de gelo e o corpo protegido por fatos de oleado que também tinham que trazer de casa, era impressionante ver como esta tarefa era feita de forma tão rudimentar pelos pescadores (por vezes sob o efeito do bagaço simples que lhes era distribuído sob o pretexto de aquecerem o corpo) e sem o mínimo de condições de trabalho e de segurança.
Por lhes serem fornecidas luvas de lã que se desfaziam em pouco tempo devido à agressividade do tempo e à dureza da faina de puxar as redes para bordo, com as mãos geladas do frio que lhes congelava os movimentos, muitos pescadores eram obrigados a improvisar luvas um pouco rudimentares de pedaços de couro que faziam parte do aparelho de pesca, protegendo-se desta forma das farpas dos cabos de aço que sobressaiam daquele aparelho, que muitas das vezes lhes provocavam ferimentos profundos nas mãos impossibilitando-os de participar na faina seguinte, isto tudo a troco de um salário mísero que não era proporcional à extrema dureza do trabalho que efectuavam.
É claro que a tudo isto não foi alheio o regime do Estado Novo nem todos aqueles “que se alimentavam da mesma gamela” (onde se inclui o Almirante Henrique Tenreiro e outros que também enriqueceram com a epopeia das pescas) e que viveram sempre à sombra dos privilégios que o regime lhes concedia, mas que ao mesmo tempo ostentavam uma pose de beneméritos, quando no fundo se aproveitaram da extrema pobreza e das necessidades dos mais carenciados para fazerem deles os “eternamente agradecidos” enquanto eles se auto intitulavam os “historicamente benfeitores”.
Por muito que alguém (involuntariamente) se possa sentir agradecido pelos benefícios que possivelmente retirou da situação vivida antes do 25 de Abril e da convivência que lhe foi proporcionada por ter privado com algumas das personagens do Estado Novo, eu considero que a história deve ser uma descrição isenta dos acontecimentos vividos e sem qualquer adulteração dos mesmos.
Por conseguinte considero, por uma questão de honestidade intelectual e de rigor histórico, que os factos não devem ser alterados ou, por esta via, se tente reabilitar a imagem de quem quer que seja, porque isso seria adulterar uma realidade inquestionável e universalmente comprovada pelos acontecimentos, que não pode ser escamoteada por meros sentimentos saudosistas.
Não sendo o único (como por vezes se quer fazer querer) o Almirante Henrique Tenreiro pode ter sido (motivado pelas intenções economicistas da altura e já descritas) um dos obreiros da Obra Social da Fragata D. Fernando II e Glória e, através desta instituição, as crianças que lá foram internadas terem sido beneficiadas por lhes ter sido proporcionado a utilização das “ferramentas” com que construíram o seu futuro.
Mas isto não quer dizer que (por esse facto) se “apague a história”, isentando aquele Almirante e outras personalidades das suas responsabilidades e do colaboracionismo com o regime repressivo do Estado Novo, assim como da sua cumplicidade com as condições impostas e tremendamente degradantes em que viveram milhares de pescadores e outros profissionais que participaram na pesca do bacalhau, que perderam a sua juventude navegando meses a fio longe dos seus familiares nos mares tumultuosos e frios da Noruega, Terra Nova e da Gronelândia, onde, suportando condições de trabalho e de sobrevivência duríssimas debaixo de tempestades medonhas, com a morte diariamente a “inundar-lhes o convés ou a espreitar pelas vigias”, amargamente aí procuraram melhores condições de vida e o sustento dos seus familiares.

 Carlos Vardasca
(Braz, ex-aluno nº 14 – 1963-1968)
21 de Outubro de 2011

Foto: Pescadores portugueses da Pesca do Bacalhau.



[1] In “D. Fernando II e Glória. A Fragata que renasceu das cinzas”, página 159, de António Emílio Ferraz Sacchetti. Edição dos CTT, Correios de Portugal 1998.

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