Aníbal Cabrita em primeiro plano, na companhia do "Albufeira" e do João Coelho, por altura do V Encontro Nacional dos Antigos Alunos da Fragata D. Fernando II e Glória, realizado no Bombarral no dia 2 de Junho de 2012.
Aníbal Cabrita. Ex-Aluno nº 229
Havia no meu tempo, a
bordo da nossa Fragata, o sapateiro, figura austera, com cara de
poucos amigos, vendo-se no rosto uma acentuada cicatriz, dizia-se que fruto de
uma antiga rixa do seu tempo de juventude.
Era hábito então a bordo usarmos aqueles "sapatinhos" com os quais viemos
ao mundo, porque os outros, os verdadeiros, esses serviam apenas para as saídas;
acontecia porém que durante o inverno e principalmente nos dias chuvosos
os mais friorentos tomavam a "liberdade" de os calçar, coisa que
irritava grandemente o nosso amigo sapateiro, uma vez que o uso continuado dos
sapatos significava mais trabalho para ele.
Quando isso acontecia, o homem
protestava, praguejava, ameaçava, vociferava e sei lá que mais.
Lembro-me ainda daquela pequena porção de sabão que nos era distribuída, creio
que uma vez por semana, para a lavagem da roupa e higiene pessoal, "mordomias"
a que alguns dos nossos camaradas pouco habituados consideravam um desperdício
de tempo, e que por isso iam acumulando nos seus cacifos um considerável
"pé de meia" daquele precioso bem.
O sapateiro ao se aperceber de que
uma parte da rapaziada era "alérgica" ao uso do sabão e que o mesmo
se acumulava inutilmente nos cacifos, logo tratou de iniciar uma
"pedinchice" a que alguns iam cedendo, e assim conseguia
delapidar os mais incautos.
Não sei o que me passou pela cabeça na altura, lembrei-me então de
fazer uma sátira ao sapateiro em forma de versos e cantá-los numa daquelas
peregrinações a Fátima organizadas pelo padre Fatela capelão de bordo.
O
sucesso foi grande e logo a notícia se propagou, chegando ao conhecimento do
sapateiro; o pior foi o que sucedeu a seguir. O sapateiro ao chegar a bordo
apresentou queixa ao tenente Vinagre, só que trocou os números e em vez de se
queixar do 229 queixou-se do 219 de alcunha o "Bicho Mole".
Quando o
tenente confrontou o "Bicho Mole" com o assunto, o pobre do
rapaz sem perceber patavina do que se estava a passar, quedou-se
estupefacto a olhar para o tenente que imediatamente se apercebeu que dali
poderia surgir tudo menos sátiras ao sapateiro, e tratou de correr com os dois
do seu gabinete.
Eu que assisti a tudo a partir do camarote do Mestre Dias, o
"Serradura", vi o sapateiro sair praguejando, e durante algum tempo
vivi receoso de que ele viesse a descobrir o verdadeiro autor dos versos,
porque o homem não era propriamente para brincadeiras.
Embora toscos, aqui vão os versos que me valeram na altura ser chamado de
poeta.
É na sapataria Gomitos
Que se fazem os sapatitos
P'rós alunos da Fragata,
É com cada disparate
Que sempre que calço um sapato
Nasce-me no pé uma batata.
Quando os meus sapatos arranjou
O Gomitos não me poupou
E arranjou-os com sola grossa.
Quando um sapato descalcei,
Muito espantado fiquei,
Tinha no pé uma mossa.
Ora disso lhe fui falar
Coxeando e a chorar
Ele respondeu-me então.
P'rós sapatos bem arranjados,
Vocês estão informados
Quero que tragam sabão
Desde aí então
Tenho juntado muito sabão
E levado ao sapateiro;
Mas para isso chego a andar
Com a roupa por lavar
Por vezes o mês inteiro.
Os meus sapatos
O sapateiro para fazê-los
Copiou os últimos modelos
Dos habitantes da lua,
Vejam se não tenho razão,
É com cada sapatão
Que mais parece uma falua.
Nota: Gomes, era o nome do sapateiro, daí o diminuitivo "Gomitos".
Falua, era o nome dado às embarcações que faziam o transporte de mercadorias
entre as duas margens do Tejo.
A lua, era na altura muito falada e cantada, era uma incógnita pois o
homem não tinha ainda chegado lá.
Aníbal Cabrita
ex-Aluno nº229
(1956-1959)