Foto 1 e 2: Duas fases do incêndio que destruiu a Fragata D. Fernando II e Glória no dia 3 de Abril de 1963.
" (...) De súbito, algo de
estranho e inesperado veio perturbar a tranquilidade daquele momento.
Vários alunos corriam de
um lado para o outro, vindos da bateria e da coberta, enquanto outros se socorriam
de baldes que vieram buscar ao convés para participar no combate ao incêndio
que deflagrara no porão junto ao gerador da luz. Mantendo-se estático,
precisamente no mesmo local por onde viajou por mundos imaginários, Braz aí permaneceu,
aparentando uma estranha tranquilidade apesar de inquieto, atento ao desenrolar
das cenas dos próximos capítulos, cujo romance no seu final se revelaria
profundamente dramático.
Ao seu lado, alguns
alunos mais velhos, ainda esboçaram pequenas frases na tentativa de tranquilizar
os restantes pensando estar ao corrente da situação:
– É
malta! Tenham calma que isto não é nada, é simplesmente um exercício de
simulação de incêndio que é costume realizar-se uma vez por mês.
Apesar
daquela tentativa apaziguadora da situação, a inquietação começou a apoderar-se
de Braz e de todos os presentes
quando uma baforada de chamas e de fumo se elevaram no ar vindo das escadas
que davam acesso ao compartimento da bateria. Começando a ficar perturbado,
correu desordenadamente em direcção incerta, e ainda tentou saltar do convés
para a água, mas recuou devido à altura que lhe coalhou os movimentos.
Nas águas agora revoltas
pelo chapinhar de alguns alunos que se tinham atirado ao Tejo e que, no
desespero, não tiveram tempo de se lembrar que não sabiam nadar, já se movimentavam
embarcações de salvamento vindas do draga-minas NRP Almirante Schultz e de rebocadores que tentavam apagar o incêndio que já alastrava por todo o navio
escola.
Desorientado e porque não
queria atirar-se ao rio por ainda não ter frequentado as aulas de natação, Braz desceu as escadas para a bateria
a muito custo, tentando dirigir-se para o portaló que, apesar do
fumo intenso que cobria a totalidade daquela zona, deixava ver, do último
degrau das escadas, a claridade que irradiava do lado de fora daquela nau que
definhava lentamente, talvez ferida de morte.
Envolto num espesso fumo
que lhe sufocava a respiração, tentou chegar ao portaló, mas as forças iam
escasseando e caiu em cima de um dos canhões, abraçando-se de imediato a ele na
ânsia de se amparar, tentando levantar-se e fugir daquele inferno sufocante e
abrasador.
A muito custo, e quase
sem forças para se libertar daquele cenário dantesco, conseguiu rastejar até às
escadas da bateria de regresso ao convés, apoiando-se no corrimão que lhe serviu
de orientação para começar a respirar ar puro, recuperar forças e dirigir-se à
baleeira de salvamento que ainda não tinha sido arreada.
A única baleeira que
ainda permanecia pendurada nos turcos estava apinhada de alunos que excediam o
número de tripulação recomendada para aquele tipo de embarcação, mas Braz, porque desconhecia as
regras e mesmo que as soubesse não teria tempo de as cumprir devido ao estado
emocional em que se encontrava, meteu-se dentro dela, indo engrossar aquele
coro de desespero que aflitivamente implorava que arreassem a baleeira, que já
começava a ser chamuscada pelo fumo negro que se libertava do calor das labaredas
que se aproximavam com ferocidade de quem ali se refugiara.
Foram feitas várias
tentativas para arrear a baleeira mas os cadernais, que teimavam em não
obedecer à emergência, assim como a restante engrenagem, envelhecida e há muito
carcomida pelo tempo, não acudiam ao desespero dos alunos mais velhos que
participavam na operação de salvamento nem aos apelos aflitivos e de desespero
expressos por todas aquelas crianças que ocupavam excessivamente a baleeira.
Ainda não liberto do
inferno que o atormentava, Braz entrou
noutro também dramático, fazendo ouvir os seus apelos de desespero, juntando os
seus lamentos aos das restantes crianças que suplicavam por ajuda, envoltas em
fumo negro e labaredas que não paravam de avançar na direcção da baleeira.
– Arreiem... arreiem... arreiem
a baleeira, senão morremos aqui todos – implorava, numa imensa aflição enquanto
as labaredas se aproximavam ferozmente e já começavam a chamuscar o casco do
único refúgio, que possibilitaria o salvamento daquelas crianças que choravam
angustiadamente com as fagulhas a crepitar à sua volta.
Após várias tentativas
para fazer arrear a baleeira sem sucesso enquanto a nau já agonizava ferida de
morte, inesperadamente, e sem terem consciência das consequências que daquele
acto poderia advir, dois alunos mais velhos surgiram do meio das chamas e,
munidos das forças que ainda lhes restavam, avançaram na direcção das talhas que
mantinham suspensa a baleeira, tentando arreá-la a muito custo. Como um dos
lados foi arreado abruptamente, a baleeira cedeu ficando pendurada somente num
dos turcos, e todos os alunos caíram desamparadamente na água, salvando-os a
todos daquele inferno intensamente abrasador ao fazê-los mergulhar nas águas do
Tejo, mas sabendo de antemão que toda a fragata em
chamas já se encontrava rodeada de barcos de salvamento que recolheriam os alunos
que não soubessem nadar.
Braz parecia ter-se
despenhado do um precipício e mergulhado nas águas profundas de um lago povoado
de monstros. Por várias vezes, no seu
trajecto pelas profundezas das águas por onde se afundava e espreitava a
superfície, num sobe e desce que se assemelhava a uma dança inglória pela
sobrevivência, pareceu ter visto longos tentáculos que o tentavam agarrar em
vão, dos quais, inconscientemente, tentava libertar-se.
Com receio de se tratar
dos velhos monstros que inundavam a sua imaginação e que atacavam as caravelas
vomitando bolas de fogo, gesticulava desordenadamente os braços para se tentar
manter à superfície numa aflição deveras egoísta, agarrando-se a tudo o que
pudesse ser agarrado, nem que fosse aos pequenos limos que cresciam junto ao
casco do velho veleiro como o capim que faz ondular as extensas savanas, ou a
outros alunos que também bracejavam nas águas revoltas. As forças começavam a
faltar-lhe e a claridade da superfície tornava-se mais distante, cada vez mais
escura.
Ao sentir-se abraçado pelos
tentáculos de um polvo gigante, tudo parecia perdido. Imaginando-se uma
personagem daquelas páginas das histórias aos quadradinhos que povoaram a sua
infância e onde tudo felizmente parecia já pré-definido, previa agora que o seu
final não ia ser nada feliz. Na escuridão das ravinas que davam guarida àqueles
monstros, tudo se assemelhava a extensas grutas, e a sua proximidade deixava a
espuma branca das ondas que se espreguiçavam à superfície a distâncias que
pensava jamais poder voltar a percorrer, onde a fragata, calcinada, cedia rendida ao fogo na sua última batalha
de desfecho inglório.
Mas, ao contrário do que
se poderia prever, a superfície voltou a
sorrir-lhe e Braz,
extasiado de alegria, viu que afinal os enormes tentáculos não eram mais do que
os braços fortes do Tarzan[1],
que num esforço enorme e num acto de extrema coragem, o foi arrancar de
profundidades incertas e o trouxe até à superfície, colocando-o num bote que já
abarrotava de sobreviventes.
Ainda no bote que estava
a ser remado para Cacilhas,
foram-lhe prestados os primeiros socorros e, já em cima da muralha, através de
várias flexões, expulsou um mar de água daquele corpo que parecia não querer acordar
para assistir ao último acto daquela peça trágica.
Era dia 3 de Abril de
1963 e daquele incêndio resultaram apenas dois feridos, o Joãozinho, ferido com
alguma gravidade e o René, com ferimentos mais ligeiros, aluno que mais tarde
veio a jogar no Futebol Clube os
Belenenses.
Órfãos da instituição
naval que os acolheu, libertados da fome e da miséria que já grassava ainda
dentro do ventre materno, os alunos da Fragata
D. Fernando II e Glória enveredaram por um longo processo que roçava
o nomadismo institucional sem paradeiro certo. Após o incêndio foram colocados
provisoriamente na Escola Profissional
de Pesca de Pedrouços e, mais tarde, num edifício da Capitania do Porto de Setúbal até à
extinção um pouco inglória daquela obra social, de onde Braz saiu aos dezoito anos de idade com uma cédula marítima com
o número 336731 e um certificado de aptidão física, que no seu verso lembrava
algumas regras assinado pelo Ministro da Marinha Américo Deus Rodrigues Thomaz,
que possibilitou a sua admissão na Marinha
Mercante como ajudante de cozinha a bordo do Benguela, navio cargueiro da Companhia Colonial de Navegação, que
fazia a carreira nas costas ocidental e oriental de África, com escala em Angola, desde Cabinda até à baía dos
Tigres, depois de ter passado pelas ilhas de Cabo Verde e S. Tomé e
Príncipe, e em Moçambique,
desde Lourenço Marques até Porto Amélia, depois de ter aportado
em Cape Town, Port Elizabeth e Durban, na África do Sul" (...)
Nota: Pequeno texto retirado do romance "Fardados de Lama", da autoria de Carlos Vardasca (Braz, ex-aluno nº 14-1963-1968) editado em 2016. Editora Eueudito, páginas 128,129,130,131,132 e 133.
[1] Alcunha do aluno José Manuel Lopes, também conhecido pelo Caminha.
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