domingo, 3 de abril de 2016

Uma data a recordar. 3 de Abril de 1963. 53 anos depois.


Foto 1 e 2: Duas fases do incêndio que destruiu a Fragata D. Fernando II e Glória no dia 3 de Abril de 1963.


" (...) De súbito, algo de estranho e inesperado veio perturbar a tranquilidade daquele momento.
Vários alunos corriam de um lado para o outro, vindos da bateria e da coberta, enquanto outros se socorriam de baldes que vieram buscar ao convés para participar no combate ao incêndio que deflagrara no porão junto ao gerador da luz. Mantendo-se estático, precisamente no mesmo local por onde viajou por mundos imaginários, Braz aí permaneceu, aparentando uma estranha tranquilidade apesar de inquieto, atento ao desenrolar das cenas dos próximos capítulos, cujo romance no seu final se revelaria profundamente dramático.
Ao seu lado, alguns alunos mais velhos, ainda esboçaram pequenas frases na tentativa de tranquilizar os restantes pensando estar ao corrente da situação:
          – É malta! Tenham calma que isto não é nada, é simplesmente um exercício de simulação de incêndio que é costume realizar-se uma vez por mês.
          Apesar daquela tentativa apaziguadora da situação, a inquietação começou a apoderar-se de Braz e de todos os presentes quando uma baforada de chamas e de fumo se elevaram no ar vindo das escadas que davam acesso ao compartimento da bateria. Começando a ficar perturbado, correu desordenadamente em direcção incerta, e ainda tentou saltar do convés para a água, mas recuou devido à altura que lhe coalhou os movimentos.
Nas águas agora revoltas pelo chapinhar de alguns alunos que se tinham atirado ao Tejo e que, no desespero, não tiveram tempo de se lembrar que não sabiam nadar, já se movimentavam embarcações de salvamento vindas do draga-minas NRP Almirante Schultz e de rebocadores que tentavam apagar o incêndio que já alastrava por todo o navio escola.
Desorientado e porque não queria atirar-se ao rio por ainda não ter frequentado as aulas de natação, Braz desceu as escadas para a bateria a muito custo, tentando dirigir-se para o portaló que, apesar do fumo intenso que cobria a totalidade daquela zona, deixava ver, do último degrau das escadas, a claridade que irradiava do lado de fora daquela nau que definhava lentamente, talvez ferida de morte.
Envolto num espesso fumo que lhe sufocava a respiração, tentou chegar ao portaló, mas as forças iam escasseando e caiu em cima de um dos canhões, abraçando-se de imediato a ele na ânsia de se amparar, tentando levantar-se e fugir daquele inferno sufocante e abrasador.
A muito custo, e quase sem forças para se libertar daquele cenário dantesco, conseguiu rastejar até às escadas da bateria de regresso ao convés, apoiando-se no corrimão que lhe serviu de orientação para começar a respirar ar puro, recuperar forças e dirigir-se à baleeira de salvamento que ainda não tinha sido arreada.
A única baleeira que ainda permanecia pendurada nos turcos estava apinhada de alunos que excediam o número de tripulação recomendada para aquele tipo de embarcação, mas Braz, porque desconhecia as regras e mesmo que as soubesse não teria tempo de as cumprir devido ao estado emocional em que se encontrava, meteu-se dentro dela, indo engrossar aquele coro de desespero que aflitivamente implorava que arreassem a baleeira, que já começava a ser chamuscada pelo fumo negro que se libertava do calor das labaredas que se aproximavam com ferocidade de quem ali se refugiara.
Foram feitas várias tentativas para arrear a baleeira mas os cadernais, que teimavam em não obedecer à emergência, assim como a restante engrenagem, envelhecida e há muito carcomida pelo tempo, não acudiam ao desespero dos alunos mais velhos que participavam na operação de salvamento nem aos apelos aflitivos e de desespero expressos por todas aquelas crianças que ocupavam excessivamente a baleeira.
Ainda não liberto do inferno que o atormentava, Braz entrou noutro também dramático, fazendo ouvir os seus apelos de desespero, juntando os seus lamentos aos das restantes crianças que suplicavam por ajuda, envoltas em fumo negro e labaredas que não paravam de avançar na direcção da baleeira.
– Arreiem... arreiem... arreiem a baleeira, senão morremos aqui todos – implorava, numa imensa aflição enquanto as labaredas se aproximavam ferozmente e já começavam a chamuscar o casco do único refúgio, que possibilitaria o salvamento daquelas crianças que choravam angustiadamente com as fagulhas a crepitar à sua volta.
Após várias tentativas para fazer arrear a baleeira sem sucesso enquanto a nau já agonizava ferida de morte, inesperadamente, e sem terem consciência das consequências que daquele acto poderia advir, dois alunos mais velhos surgiram do meio das chamas e, munidos das forças que ainda lhes restavam, avançaram na direcção das talhas que mantinham suspensa a baleeira, tentando arreá-la a muito custo. Como um dos lados foi arreado abruptamente, a baleeira cedeu ficando pendurada somente num dos turcos, e todos os alunos caíram desamparadamente na água, salvando-os a todos daquele inferno intensamente abrasador ao fazê-los mergulhar nas águas do Tejo,  mas sabendo de antemão que toda a fragata em chamas já se encontrava rodeada de barcos de salvamento que recolheriam os alunos que não soubessem nadar.
Braz parecia ter-se despenhado do um precipício e mergulhado nas águas profundas de um lago povoado de monstros. Por várias vezes, no seu trajecto pelas profundezas das águas por onde se afundava e espreitava a superfície, num sobe e desce que se assemelhava a uma dança inglória pela sobrevivência, pareceu ter visto longos tentáculos que o tentavam agarrar em vão, dos quais, inconscientemente, tentava libertar-se.
Com receio de se tratar dos velhos monstros que inundavam a sua imaginação e que atacavam as caravelas vomitando bolas de fogo, gesticulava desordenadamente os braços para se tentar manter à superfície numa aflição deveras egoísta, agarrando-se a tudo o que pudesse ser agarrado, nem que fosse aos pequenos limos que cresciam junto ao casco do velho veleiro como o capim que faz ondular as extensas savanas, ou a outros alunos que também bracejavam nas águas revoltas. As forças começavam a faltar-lhe e a claridade da superfície tornava-se mais distante, cada vez mais escura.
Ao sentir-se abraçado pelos tentáculos de um polvo gigante, tudo parecia perdido. Imaginando-se uma personagem daquelas páginas das histórias aos quadradinhos que povoaram a sua infância e onde tudo felizmente parecia já pré-definido, previa agora que o seu final não ia ser nada feliz. Na escuridão das ravinas que davam guarida àqueles monstros, tudo se assemelhava a extensas grutas, e a sua proximidade deixava a espuma branca das ondas que se espreguiçavam à superfície a distâncias que pensava jamais poder voltar a percorrer, onde a fragata, calcinada, cedia rendida ao fogo na sua última batalha de desfecho inglório.
Mas, ao contrário do que se  poderia prever, a superfície voltou a sorrir-lhe e Braz, extasiado de alegria, viu que afinal os enormes tentáculos não eram mais do que os braços fortes do Tarzan[1], que num esforço enorme e num acto de extrema coragem, o foi arrancar de profundidades incertas e o trouxe até à superfície, colocando-o num bote que já abarrotava de sobreviventes.
Ainda no bote que estava a ser remado para Cacilhas, foram-lhe prestados os primeiros socorros e, já em cima da muralha, através de várias flexões, expulsou um mar de água  daquele corpo que parecia não querer acordar para assistir ao último acto daquela peça trágica.
Era dia 3 de Abril de 1963 e daquele incêndio resultaram apenas dois feridos, o Joãozinho, ferido com alguma gravidade e o René, com ferimentos mais ligeiros, aluno que mais tarde veio a jogar no Futebol Clube os Belenenses.
Órfãos da instituição naval que os acolheu, libertados da fome e da miséria que já grassava ainda dentro do ventre materno, os alunos da Fragata D. Fernando II e Glória enveredaram por um longo processo que roçava o nomadismo institucional sem paradeiro certo. Após o incêndio foram colocados provisoriamente na Escola Profissional de Pesca de Pedrouços e, mais tarde, num edifício da Capitania do Porto de Setúbal até à extinção um pouco inglória daquela obra social, de onde Braz saiu aos dezoito anos de idade com uma cédula marítima com o número 336731 e um certificado de aptidão física, que no seu verso lembrava algumas regras assinado pelo Ministro da Marinha Américo Deus Rodrigues Thomaz, que possibilitou a sua admissão na Marinha Mercante como ajudante de cozinha a bordo do Benguela, navio cargueiro da Companhia Colonial de Navegação, que fazia a carreira nas costas ocidental e oriental de África, com escala em Angola, desde Cabinda até à baía dos Tigres, depois de ter passado pelas ilhas de Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe, e em Moçambique, desde Lourenço Marques até Porto Amélia, depois de ter aportado em Cape Town, Port Elizabeth e Durban, na África do Sul" (...)

Nota: Pequeno texto retirado do romance "Fardados de Lama", da autoria de Carlos Vardasca (Braz, ex-aluno nº 14-1963-1968) editado em 2016. Editora Eueudito, páginas 128,129,130,131,132 e 133.


[1] Alcunha do aluno José Manuel Lopes, também conhecido pelo Caminha.



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