Bilhete de Identidade do Agusto Fernando Gomes, aos 16 anos de idade.
O Augusto Fernando Gomes em primeiro plano (blusão castanho) na companhia do Joaquim Lopes (ao centro) e do Eduardo Massa Constâncio, ex-aluno nº 210, após um almoço no restaurante "CID" em Lisboa.
O meu destino já estava marcado. No Colégio D. Maria Pia já me tinham dito que (nem sei por que razão) eu iria ser transferido para uma velha Nau onde decerto deveria percorrer (como veio a acontecer) outros destinos na minha vida profissional. Chegado à Doca da Marinha próximo do Terreiro do Paço, lá me fizeram embarcar numa pequena vedeta que rumou a um local que para mim era totalmente desconhecido.
Apesar de estarmos em Abril, a manhã parecia estar um pouco nebulosa, quando de repente me deparei defronte de um “monstro” pintado de negro, com antigas peças de artilharia voltadas para um alvo desconhecido.
Debaixo da minha inocência e sem perceber porque é que me transferiam de um lado para o outro, entrei a bordo da Fragata com apenas 14 anos de idade e jamais me esquecerei do meu primeiro dia a bordo.
Recordo-o ainda hoje, porque foi marcante na minha idade ainda criança, mas também porque nunca compreendi como é era possível tratarem pessoas daquela forma tão cruel, precisamente no dia em que eram recebidos a bordo.
Recordo-me que naquele dia estávamos eu, o Adolfo[1], o Braz, o Victor (de alcunha “o gordo”) o Joel, o “Zé Nabo” e outros de quem não me recordo agora o nome, junto do paiol para recebermos o novo fardamento e a palamenta na companhia do Manhiça, aluno mais velho do Colégio D. Maria Pia que nos acompanhou até à Fragata. Enquanto despíamos a farda do Colégio D. Maria Pia, aquele aluno mais velho, alto, de estatura robusta, manteve-se sempre junto a nós, denotando-se na sua expressão um sentimento de pena pela despedida, onde em determinado momento lhe vi correrem as lágrimas pela face escura, tisnada num dos recantos algures em terras de África.
Depois de um abraço sentido e repartido por todas as crianças que ficariam a partir daquele momento à guarda da Fragata D. Fernando II e Glória, nunca mais o voltei a ver e, após a sua despedida, que ficou envolta num cenário de inquietação, senti uma certa saudade do colégio que nos acabava de despejar naquela velha Nau que, no meio daquele nevoeiro, mais parecia “uma barca de piratas que imergia de surpresa para atacar a sua presa”.
O Cabo “Borracha” foi quem nos distribuiu a farda, palamenta e outros utensílios que iriam fazer pate da nossa “mobília” a bordo, e a sua distribuição parecia correr com toda a normalidade quando algo de estranho aconteceu que jamais esquecerei durante toda a minha vida, pela agressividade empregue e de forma injustificada.
Depois de eu e os outros recém-chegados termos recebido tudo o que nos era devido sem quaisquer problemas, ao chegar a vez do Adolfo foi quando tudo se complicou.
Do Colégio de onde vínhamos, para além de outras disciplinas escolares tínhamos também aulas de francês e inglês, o que decerto influenciou o tipo de resposta que o Adolfo deu ao cabo Borracha quando este lhe perguntou:
— Então! ― Não te falta nada. Já tens tudo? ― Ao que o Adolfo respondeu:
― Yes.
Perante esta resposta, que deveria ter alguma compreensão por parte de quem a recebera, tendo em conta que fora proferida por uma criança habituada a outros costumes, eis que, de imediato o cabo Borracha respondeu:
― Ai é yes?
Possivelmente, sentindo-se inferiorizado por ser confrontado com outros conhecimentos a que não estava habituado, ou sentindo-se desautorizado nas funções a que estava incumbido, eis que o cabo Borracha levanta de imediato a mão e desfecha com extrema violência uma chapada no Adolfo, que me deixou a mim e aos restantes alunos que acabávamos de chegar muito impressionados.
É claro que já se passaram bastantes anos do ocorrido, e este episódio parece não ter nenhuma importância, mas o facto de termos sido recebidos daquela forma e com aquela agressividade, decerto que impressionou e moldou de certa forma a personalidade de todos os que presenciaram aquela cena.
A mim marcou-me profundamente, e ainda hoje recordo aqueles momentos, pois considero que crianças carentes de afectos e que deambulam de colégio em colégio não deviam ser tratadas daquela forma por adultos que, para exercerem aquelas funções deveriam ser dotados de alguma compreensão e alguma formação para lidar com este tipo de situações, mas também conhecimentos que decerto não lhes eram prestados, dado que aquelas instituições apenas tinham como objectivo esconder da sociedade a miséria que grassava em muitos lares, não sendo por isso obrigatório a colocação de profissionais de educação a bordo, bastando recrutar à marinha quadros que apenas ali iriam fazer um frete e preencher um vazio até ao final da sua carreira.
Augusto Fernando Gomes
(“Torta”)
Ex-aluno nº 13
(1963 – 1967)
27 de Março de 2012
[1] Adolfo Manuel de Abreu Dias, ex-Aluno nº 12 da Fragata D. Fernando II e Glória, falecido em 2010.