segunda-feira, 30 de maio de 2011

MASTARÉU, CÃO DE BORDO

O navio “NOSSA SENHORA DA VITÓRIA” é arrastão bacalhoeiro congelador de 67metros de comprimento, 1.200 toneladas de arqueação bruta e capacidade para transportar 750 toneladas de pescado.
Naquele ano de escassez de peixe no noroeste Atlântico o armador decidiu rumar o navio para Svalbard (Spitzberg), pesqueiros do Mar de Barentz, entre 70º.e 80º.de latitude norte e 10º.e 35º de longitude este.
No rol de matrícula figuravam 60 tripulantes e, sem registo oficial, belo exemplar de cão oriundo da Terra Nova de bom tamanho, pelo preto, lustroso, seis viagens por gelados climas de nascimento.
Tó Labrincha, saudoso dos tempos dos lugres de 4 mastros, das velas latinas e subidas a mastaréus e vergas para ferrar pano, virou-se para a companha e decidiu, sem qualquer oposição: - este cão vai chamar-se Mastaréu.
Mastaréu passeava-se pelo convés, corredores e camarotes do navio com total liberdade e nunca a sua presença perturbou minimamente a faina dos pescadores. Estes, por vezes agrestes e duros uns com outros, rendiam-se perante o olhar meigo do Mastaréu, acariciavam-lhe o pelo, pegavam nele ao colo, meu menino de ouro, confiavam-lhe segredos, angústias, saudades.
Mastaréu, arvorado em marinheiro supranumerário, estava sempre à ilharga do Contra-Mestre, e do Mestre de Redes durante as manobras de lançar e alar a rede e pulava de contentamento quando o saco virava cheio de bacalhau; assistia a toda aquela azáfama de decapitar, eviscerar e pôr o pescado em tabuleiros para ser submetido, nos armários congeladores a menos quarenta e cinco graus centígrados e depois armazenado nos porões a menos vinte e cinco graus.
Na ponte, o cão observava, com olhar inteligente, capitão e oficiais debruçados sobre radares, sondas de detecção de cardumes, mapas, e aparelhagem que desenha a posição de icebergues e evolução do estado do tempo; atento ao vozeirão do Capitão Catarino quando ordenava, exaltado mas seguro, manobras rápidas ditadas pela perseguição de cardumes e navegação em mares de nevoeiros espessos, ventos ciclónicos, vagas alterosas; ouvia o radiotelegrafista descodificar secretas mensagens de dezenas de navios de outras nacionalidades que concorriam nos mesmos pesqueiros; admirava a infinita atenção do homem do leme sobre a bússola mantendo o rumo: vira bombordo, vira estibordo mais grau menos grau; não gostava do barulho na casa das máquinas, do motor principal de 1200 BHP, de vários geradores e bombas, mas era sensível às carícias de maquinistas e motoristas; adorava cozinheiro e ajudantes e boas rações em lugar quente.
Avaria no guincho de pesca obrigou o Capitão a arribar ao porto norueguês de Hammerfest, do sol da 1meia-noite, cidade mais ao norte da Europa, onde o sol se mantém acima do horizonte de meados de Maio a Julho e desaparece de Novembro a Janeiro.
Mal se avistava terra já o canídeo farejava ventos na esperança, até ali abortada, de encontrar fêmea para acasalamento.
Mastaréu, de rabo no ar, dava sinais de inquietação crescente porque o seu radio, mais sensível do que o de bordo, captou, em ondas de alta e média frequência, sinais evidentes da presença de cadela na meia encosta nevada do fiorde que dava acesso ao porto. A fêmea, por seu turno, entrou em sintonia e respondeu no seu morse de latidos que Mastaréu facilmente traduziu.
Durante as manobras de atracação do navio, em salto que parecia impossível, o cão alcançou o cais e largou em corrida infrene para o local onde ia, finalmente, encontrar a fêmea ansiosa, a sempre adiada noite de amor, a sua noite branca.
Mas as autoridades portuárias estavam atentas a desembarques clandestinos e foram em perseguição de mastaréu.
Capitão Catarino, desolado e preocupado, observou a captura do animal e, de pronto, procurou convencer as autoridades a devolver o cão ao navio.
Ninguém teve culpa, o cão saltou para terra, de modo imprevisto, a razoável distância do cais, pulo que ninguém admitia estar ao seu alcance; o cão não é deste ou daquele tripulante; é do navio; o cão é estuário onde desaguam amarguras de isolamento e solidão de tripulantes endurecidos pela dureza da faina de quatro meses consecutivos, sem sábados e domingos, longe da família e de amigos, sofrendo, cada dia, as contingências da fortuna do mar e incertezas da pesca; o bicho não mordeu; está vacinado; é inteligente e abnegado; de uma vez, alertou a tripulação com latidos, para dois homens que se embaraçaram nas redes e caíram ao mar. Mastaréu também mergulhou nas águas geladas do Árctico, em socorro de marinheiros; animal assim não merece morrer.
As autoridades, friamente, responderam com a lei do País. Lamentaram, mas tinham de cumprir o seu dever, não havia apelação possível. Leis são leis e elas impõem que o cão seja abatido e o navio multado.
Capitão e tripulação choraram a perda do mastaréu que era pessoa querida da sua família.
No preciso instante da imolação, a tripulação do “NOSSA SENHORA DA VITÓRIA” ouviu inconsolada cadela, na meia encosta nevada do fiorde de Hammerfest, latir de forma tão estranha, insistente e magoada que dava a impressão de ser ela própria a sentir na carne a injecção letal que pôs termo à vida de mastaréu, cão de bordo, cão do navio, que, sendo de todos e de ninguém, morreu de amor por cadela que não conheceu.
                                                              
Armando Reis Leitão
1990
    Antigo Funcionário Administrativo da Sociedade Nacional de
Armadores do Bacalhau (SNAB) e Administrador da empresa.           

Um comentário:

Clara Pracana disse...

Adorei! Pobre Mastaréu...
Abraço
Clara