quarta-feira, 27 de abril de 2011

Os Veleiros do Bacalhau

Frente aos Jerónimos, realizavam-se, anualmente, as cerimónias de bênção e partida de Lugres de madeira para os bancos da Terra Nova e mares da Gronelândia. Eram embarcações entre trinta e cinco e sessenta metros de comprimento, três a quatro mastros. Cerca de mil e seiscentos pescadores, constituíam a frota bacalhoeira portuguesa no ano de 1941.
Dom Manuel Trindade Salgueiro, filho de pescador que se perdeu em naufrágio, assim se despediu dos pescadores:
“Sou de Ílhavo, terra de mareantes, num litoral bordado de capelinhas brancas. Quantas vezes não tenho sentido tragicamente a epopeia simples dos pescadores, quer junto à nossa costa, quer lá longe, nesses mares onde o céu é de chumbo, o mar um sepulcro, e onde, por vezes, entre as águas e as nuvens, tudo parece perdido! Marinheiros de Portugal! Vós sois os continuadores dos nautas de antanho...”
Os Lugres transportavam nos conveses pilhas de frágeis botes – Dóris - que os pescadores chamavam “douros”. O bacalhau era capturado com linhas e anzóis em minúsculas embarcações de quatro metros de comprido, boca aberta, fundo chato, sem quilha nem leme, três tábuas no fundo e quatro ao lado, sem patilhão, sem cintos de salvação nem caixas-de-ar para boiar; um par de remos, vela e palamenta.
Um solitário homem a bordo do Dóri, arriado do Lugre às quatro horas da manhã e içado às cinco da tarde para enfrentar vaga, nevoeiro, frio gélido, a duas ou três milhas do navio. Os Dóris eram frágeis, mas não o eram os pescadores que os tripulavam.
Cinco meses em risco permanente de vida, o trabalho prosseguia no lugre, noite fora, na escala e salga do peixe, quatro horas de sono. Em períodos de abundância, houve pescadores que aguentaram 40 horas a trabalhar, sem dormir.
Os temporais, podiam surgir sem pré-aviso, com os Dóris no mar correndo o pescador o risco de se afogar, perder, ser abalroado ou desfazer-se contra o próprio navio.
O “Maria da Glória” além dos inúmeros temporais que suportou não aguentou o último e definitivo que não foi desencadeado por forças da natureza.
O airoso Lugre de madeira de 3 mastros navegava, em 1943, no Estreito de Davis em direcção aos pesqueiros da Gronelândia. Subitamente, sem que a tripulação se apercebesse da presença de qualquer navio de guerra, caíram granadas no mar e depois no próprio lugre que, rapidamente se incendiou. Vários pescadores morreram e Sílvio Ramalheira, Capitão de Ílhavo de família de grandes Capitães, foi gravemente atingido. Arriaram-se nove Dóris que também foram alvejados. Só então a tripulação se apercebeu da presença de submarino e mais tarde se soube que a sinistra máquina de guerra afundava tudo o que encontrasse na rota do couraçado alemão “Bismark”, perseguido pela aviação e marinha inglesa. Suportaram tempestades durante quatro dias. Não dispunham de água ou de comida. Endoideciam, morriam. No quinto dia só havia três Dóris.
Passados 9 dias foram avistados por avião que largou caixas de sinais e comida. Esses sinais foram captados por navio canadiano que acudiu ao último Dóri. Só ali encontrou seis sobreviventes. Morreram trinta e seis homens do “Maria da Glória”, sacrificados por uma guerra em que Portugal não entrou. Capitão Sílvio esteve muitos meses sem poder andar e nem ele nem qualquer dos seus tripulantes deram pela silhueta do "Bismark" nos onze dias que andaram à deriva.
O bacalhau foi vida de inferno para os pescadores dos Lugres. Estes homens não podem ser responsabilizados pela degradação dos pesqueiros, não pescaram imaturos, lutaram nas condições mais adversas, contra mar, vento e icebergues no Grande Banco e mares da Gronelândia, cemitérios de muitos navios e tripulantes. Graças à sua abnegação e sacrifício, durante a segunda guerra mundial, não faltou em Portugal o alimento preferido.
Na década de quarenta a frota bacalhoeira integrava, entre outros, os seguintes lugres:
ALCION, ANA MARIA, AVIZ, ANA I, JOÃO JOSE II, JULIA I, JULIA IV, GROENLANDIA, 1º NAVEGANTE, NAVEGANTE II, NAVEGANTE III, NEPTUNO II, NORMANDIE, LEOPOLDINA, MARIA CARLOTA, PAÇOS DE BRANDÃO, SENHORA DA SAUDE, DOM DENIZ, RAINHA SANTA, FLORENTINA, MARIA PRECIOSA, CRUZ DE MALTA BRITES, SÃO JACINTO, GASPAR, ILHAVENSE II, INFANTE DE SAGRES SANTA ISABEL, GAZELA I, ARGUS, HORTENSE, CREOULA, MARIA DA GLÓRIA, SANTA MARIA MANUELA, SANTA MARIA MADALENA, TROMBETAS, NOVOS MARES, DELÃES, OLIVEIRENSE, LUSITANIA III, LABRADOR, SANTA QUITÉRIA.
Portugal, a três mil milhas dos pesqueiros, foi o último país do mundo a enviar uma frota de vela ao Atlântico.
Armando Reis Leitão
Antigo Funcionário Administrativo da Sociedade Nacional de
Armadores do Bacalhau (SNAB) e Administrador da empresa.
Foto: Lugre “Maria da Glória” afundado pelo submarino alemão U94 da Classe VIIC

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