sábado, 28 de janeiro de 2012

A Última Nau da Índias ainda está "encafuada" em Cacilhas

Quadro de Roger Chapelet (1845) Edição do Museu de Marinha. Colecção Lusitânia.

Como ex-aluno da Fragata D. Fernando II e Glória, permitam-me este desabafo. Das várias vezes que visitei aquela velha NAU, sinceramente não gostei nada de a ver "encafuada" há tanto tempo entre muralhas, nem da degradação que se vai notando na sua estrutura assim como um certo abandono que se vai observando na sua manutenção, o que não se verificou (como é óbvio e percebe-se porquê) nos tempos "áureos" da Expo 98.
Em minha opinião, também penso que a doca onde a Fragata está "ancorada" não é o local mais apropriado nem o mais digno pa
ra que uma Nau daquela beleza e com a sua história seja mostrada ao público numa perspectiva mais abrangente.
Em vez de estar meio "escondida" entre muralhas, sou da opinião de que a Fragata D. Fernando II e Glória deveria estar mais visível e exposta naquele que é o grande anfiteatro da cidade de Lisboa, o rio Tejo, onde a sua visibilidade emprestaria às suas águas todo o fascínio que nos desperta aquela que foi a última NAU da carreira das Índias.
Ancorada alternadamente junto à Torre de Belém ou no Parque das Nações, podendo por vezes, temporariamente, ficar encorada ao largo em frente ao Terreiro do Paço, de certeza que teria uma maior visibilidade e seria um excelente cartão de visita para quem visitasse o rio Tejo, imprimindo nas suas águas o reflexo das epopeias marítimas, fazendo dela um bonito postal ilustrado de que o nosso país se orgulharia de o mostrar ao mundo.
Aqui fica a sugestão, e já agora gostaria de saber a opinião de outras pessoas sobre este assunto.

Carlos Vardasca
(Braz, ex-aluno nº 14 de 1963 a 1968)

sábado, 21 de janeiro de 2012

Um pouco de história sobre a Fragata D. Fernando II e Glória (2)

(...) Mais uma fase se seguiu, após a Segunda Guerra Mundial, quando a bipolarização política mundial substituiu a ordem dos impérios. E uma quinta e última fase, em curso e ainda não baptizada, mas que não será, certamente, o "Fim da História" proposto por Francis Fukuyama, nasceu em 1989, com o fim do confronto Leste-Oeste. É porém, a terceira fase que interessa considerar, pois foi nesse período histórico que decorreu a vida operacional da Fragata D. Fernando II e Glória.
O interesse português pela exploração das terras sertanejas teria tido como ponto de partida a viagem do Doutor Francisco José de Lacerda e Almeida, governador dos Rios de Sena, que partiu de Tete em Julho de 1798 e atingiu a corte do Muata Cazembe, bem no interior do continente, onde morreu. Já com sucesso, mas pouco divulgada, foi a viagem do major Correia Monteiro e do capitão Pedroso Gamito, com 420 homens, também de Tete a Cazembe; não conseguindo ultrapassar o território deste chefe, Monteiro enviou um mensageiro com uma carta para o governador de Luanda, que só chegou ao seu destino sete anos depois - mas chegou.
Com a duração de um ano, esta expedição terminou em 1832, exactamente a data em que a Fragata D. Fernando II e Glória foi lançada à carreira, em Damão.
Muitas outras expedições se seguiram, num esforço corajoso e persistente, com o duplo objectivo de satisfazer a curiosidade científica e de proteger os direitos soberanos sobre terras que historicamente eram portuguesas.
António Francisco Ferreira da Silva Poto, na sua segunda viagem, encontrou Livingstone, em 1852, no ano em que a Fragata D. Fernando II e Glória realizou a sua primeira missão, a partir do porto de Lisboa. E foi ainda  Fragata que numa outra viagem, em 1854, recolheu em Moçambique 13 dos africanos de Silva Porto que haviam realizado a travessia e os trouxe de regresso a Benguela (...)
(...) Não se travaram combates navais, mas frequentemente as forças do Exército e da Marinha desembarcados tiveram necessidade de combater em terra, na defesa dos direitos soberanos portugueses. Era frequente e importante o transporte de homens e de material, razão pela qual quase todos os grandes navios de guerra alguma vez armaram em charrua.
Uma das raras operações iniciadas por uma acção naval foi a reocupação de toda a costa Norte de Angola, desde Ambriz até ao paralelo 5º 12' sul, e das margens do rio Zaire até às primeiras cataratas; a primeira fase ocorreu de 15 a 17 de Maio de 1855 e teve por navio-chefe a Fragata D. Fernando II e Glória (...)
(...) Em 1842, um ano antes do lançamento da Fragata à água, Portugual e a Ingalterra assinaram um tratado que punha fim à escravatura. É indiscutível o valor humano e social desta atitude, mas a sua aplicação não foi pacífica, apesar de Portugal já ter tomado a decisão unilateral da abolição da escravatura em 10 de Dezembro de 1836, com a publicação de um decreto de Sá da Bandeira nesse sentido.
Quando, em 20 de Novembro de 1857, se deu o arresto da barca francesa Charles et George, do comando do capitão Mathurin Rouxel, e que fora encontrada na baía de Condúcia, Moçambique, com 110 escravos, a Fragata D. Fernando II e Glória estava em Goa, numa das suas viagens pelo Índico (...) 

In: "D. Fernando II e Glória. A Fragata que nasceu das cinzas" (páginas 48, 49, 50 e 51) de António Emílio Ferraz Sacchetti. Edição dos CTT. 1998.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Ex-Fragatas que participaram na Guerra Colonial. Uma história de vida (1)

O José Alves a bordo de um navio de guerra na Guiné (1966-1967) e em destaque uma foto sua como Sargento Fuzileiro
O José Alves (o primeiro a contar da esquerda) no restaurante o "CID" em Lisboa (Cais do Sodré- Mercado da Ribeira) onde alguns ex-fragatas se juntam com alguma regularidade na última Sexta-feira de cada mês, na companhia do Augusto ("Torta") Braz e do "Caminha". Lisboa 2011
O José Moreira Alves (fardado de branco e de bengala na mão) na cerimónia da entrega das condecorações no dia 10 de Junho de 1968 realizada no Terreiro do Paço em Lisboa. Foto editada pela Revista “FLAMA” em 21 de Junho de 1968. Em destaque uma foto sua como aluno da Fragata D. Fernando II e Glória.
José Alves como Aluno Marinheiro (1956) e mais tarde  na Guiné no posto de Sargento.1966

"A ironia do destino"
e alguns detalhes que me vieram à memória sobre a minha vida.
 Por informação que me foi dada, nasci na aldeia de Picoto, situada numa serra localizada na actual freguesia de Golpilheira no Concelho da Batalha, distrito de Leiria.
Dei por mim com a idade de 11 meses, a viver com os meus padrinhos de baptismo (os quais foram os primeiros a quem eu tratei por pais) numa aldeia chamada Andreus na freguesia de Barreira no distrito de Leiria.
Porém, foi aqui que cresci, vivendo num ambiente bastante pobre, com bastantes dificuldades ao ponto de andar descalço e com bastantes carências. Em todo o caso, era neste ambiente que efectivamente eu me sentia feliz, brincando de toda a maneira, criando eventos e fazia os outros brincar juntando-os a mim.
Lamentavelmente muitas das vezes tudo isto era “às fugidas”, pois tinha algumas tarefas destinadas, para além da escola primária que frequentava que ficava à distância de cerca de seis a sete quilómetros.
Naquela altura para mim tudo era na desportiva. Mais tarde, quando eu já era explorado nos trabalhos do campo quis aprender um ofício, mas como não me deixaram, comecei a ser bastante rebelde. Comecei por fazer diabruras incitando os outros a envolverem-se em determinadas desordens, e fazia-me de “comandante militar organizando grupos de guerrilheiros instruindo-os a ordem militar”.
Mais tarde, com 15 anos de idade, encontrando-se a minha mãe a servir em Lisboa em casa da família do General Vassalo e Silva, ela chama-me para ir para Lisboa, pois disse-me ter eu lá um emprego numa tipografia em Alvalade, propriedade de um senhor seu conhecido.
Continuando com a “ironia do destino”, envolvi-me em picardias com um dos meus amigos do dia-a-dia até nos envolvermos à pancada.
Devido à minha constante rebeldia, a minha mãe pediu aos seus patrões se poderiam interceder para que eu fosse internado numa instituição do Estado, e lá fui eu então admitido na "Obra Social da Fragata D. Fernando II e Glória" onde fiquei até 1956.
Em 23 de Novembro de 1956 fui recrutado para o quartel de "Alunos Marinheiros" em Vila Franca de Xira onde frequentei a recruta.
Ali me senti sempre um privilegiado pois era sempre tratado por "Sr. Aluno", onde tinhamos direito a suplemento especial alimentar, e recebiamos o pré[1] superior aos recrutas. Ingressei na especialidade de Artilheiro tendo sido destacado para o Alfeite na Escola de Artilharia para frequentar o respectivo curso.    
Depois de ter andado embarcado em alguns navios, por último embarquei no Contratorpedeiro “NRP Lima", onde permaneci 18 meses estacionado na doca seca na Rocha Conde de Óbidos.
A 18 de Dezembro de 1958 embarco nomeado para uma comissão de serviço na Índia. Saio a barra embarcado no Paquete “Pátria" parando em todos os portos com destino a Lourenço Marques[2]. Nesta cidade permaneci durante cerca de 3 meses aguardando o navio "Aviso de 2ª classe” “NRP João de Lisboa" que íamos render.
Preparado o navio para a viagem, lá partimos em direcção à Índia onde percorri todo o território incluindo Ilhas e as partes de "Dadrá” e de “Nagareveli".
Estive destacado em três Lanchas de Fiscalização (Antares, Vega e Sirius), e posteriormente no Aviso de 1ª classe “NRP Afonso de Albuquerque".
Onde permaneci mais tempo foi nos navios "NRP João de Lisboa", "NRP Antares" e no "NRP Afonso de Albuquerque", tendo regressado a Lisboa em Março de 1961 a bordo do paquete “Índia" que fez rota através do Canal do Suez.
Chegado ao quartel do Corpo de Marinheiros fui frequentar novo curso na Escola de Artilharia e acabado o curso fui promovido a Marinheiro Artilheiro, embarcando de seguida para bordo de um Caça Minas e depois para um Draga-Minas.
Decorrido algum tempo, em 1962 resolvi inscrever-me para o curso de Fuzileiros Especiais, ingressando no 3º curso na Escola de Fuzileiros.
Com 22 anos de idade e prestes a fazer os 23, terminei o curso com aproveitamento, ficando algum tempo a dar instrução nos novos cursos, sendo nomeado para integrar o Destacamento de Fuzileiros Especiais Nº 4 com destino a Angola, embarcando em Fevereiro de 1963 até Março de 1965.
Fomos de avião e regressámos no "NRP São Brás". Nesta comissão houve momentos de vária ordem; ― Passou-se de bom, menos bom e de mau, e de alguns desses momentos ficaram-me de tal forma algumas recordações e marcas para toda a vida que passados tantos anos ainda hoje convivo com eles.
Um dos momentos menos dramáticos que recordo, foi ao regressarmos pelo amanhecer de uma patrulha de bote, saltando eu do mesmo com a G3 em posição em perseguição de uma "Pacaça"[3], quando ela resolve investir na minha direcção ao mesmo tempo que a arma se dispara, tendo caído ao meu lado.
Outro foi numa operação conjunta com um Grupo de Combate do Exército. Nessa operação fomos transportados em botes dos Fuzileiros seguindo pelo rio e posteriormente desembarcados para terra.
Durante o desencadear da operação, onde se fizeram alguns prisioneiros, um elemento do exército resolve agarrar um deles que era um pescador nativo afecto à UPA[4], tendo pedido ao Alferes para o levar para o interior da mata. De regresso à nossa presença, o soldado, glorificando-se do seu acto, exibia sem qualquer pudor os órgãos intestinais do guerrilheiro perante todos nós.
Como manifestação da sua “heroicidade” e manifestando uma total ausência de sensibilidade, foi com a mesma faca com que matou o guerrilheiro que abriu as latas e comeu a sua ração de combate. Como seria de esperar, passado pouco tempo tivemos de imediato a resposta do lado dos nativos sendo as nossas tropas atacadas com intenso tiroteio por parte dos guerrilheiros da UPA. Esta situação não se tornou mais grave porque sendo eu o responsável pelo grupo dos Fuzos tomei posição ordenada.
De regresso à Metrópole, fui frequentar o curso de sargentos em 1965/1966. Depois de promovido a sargento, fui nomeado para mais uma comissão de combate mas desta vez na Guiné, embarcando no navio "NRP Diogo Gomes" integrando o Destacamento de Fuzileiros Especiais Nº 7 de 1966/1968. Aí passei por várias facetas no meu percurso, tendo participado em várias operações de combate em zonas controladas pelo PAIGC[5].
Em Junho de 1967, quando me encontrava emboscado com o meu Grupo de Combate algures a Norte do rio Cacheu, ao amanhecer entrámos em contacto de fogo cruzado com o IN (PAIGC), tendo eu durante o combate sido atingido com um tiro no pé direito, tendo ficado imobilizado acabando por ser evacuado de helicóptero para o hospital de Bissau[6].
Em Julho fui evacuado para o Hospital da Marinha em Lisboa onde fui operado por duas vezes.  Ainda em convalescença no Hospital, fui convocado para estar presente nas cerimónias do dia 10 de Junho de 1968 (dia de "Camões e da Raça") no Terreiro do Paço, para receber a condecoração da medalha de "Serviços Distintos com Palma".
Terminada a convalescença no hospital, regressei à Unidade do Serviço, tendo passado à reforma extraordinária por incapaz ao serviço do activo em Maio de 1971, passando mais tarde ao estatuto de Deficiente das Forças Armadas.   
Depois de ter saído da Marinha, como o dinheiro que recebia não era muito, fui empregar-me na Lisnave[7] onde permaneci cerca de 29 anos. Aí frequentei o curso de soldador no qual trabalhei durante 6 anos, e os outros 23 trabalhei como informático no Serviço de Pessoal.
Hoje com 72 anos de idade, estou na situação de Reformado como Deficiente das Forças Armadas, no posto de Sargento-Mor Fuzileiro Especial.
É este o resumo de “um pedaço da minha vida”.
 José Moreira Alves
Ex-aluno da Fragata D. Fernando II e Glória
(nº182 - 1955-1956)
13 de Janeiro de 2012







[1] Salário militar.
[2] Actual cidade de Maputo (Moçambique).
[3] Mamífero ruminante da família dos bovídeos, mais conhecido por búfalo-africano.
[4] União Popular de Angola (UPA) Grupo de guerrilheiros que combatiam em Angola contra o exército português.
[5] Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) Grupo de guerrilheiros que combatiam na Guiné contra o exército português.
[6] Capital da Guiné no período colonial.
[7] Estaleiro Naval situado na cidade de Almada, actualmente desactivado.