Foto: O "Toni da Enxóssia" e o "Cabo Borracha" junto ao edifício da Capitania do Porto de Setúbal.
Quando entrei para a Fragata D. Fernando II e Glória tinha apenas 13 anos de idade, tendo sido muito curta a minha estadia a bordo, uma vez que entrei pelo Portaló no dia 1 e logo no dia 3 de Abril de 1963 a abandonei de uma forma tão trágica, tendo aquela “velha Nau”, última da Índias, sucumbido a um violento incêndio que a destruiu totalmente.
Por esse facto, pouco ou nada conheci sobre o cozinheiro de bordo a quem apelidaram de “Toni da Enxóssia”, mas ainda recordo algumas peripécias que os mais velhos contavam sobre ele.
De onde vem este apelido não se sabe (mas calcula-se) mas contavam os alunos mais antigos que este elemento da guarnição, personagem de estatura baixa, muito gordo e de pés muito largos e redondos, tinha o hábito (e por isso era motivo de chacota) quando na cozinha o calor era insuportável, de se pôr em tronco nu, enquanto e o seu suor corria em cascata pela sua enorme barriga a baixo para dentro das panelas, enquanto confeccionava as refeições:
― Éh “Toni da Enxóssia” estás a temperar o nosso tacho com o teu suor? ― Dizia um dos alunos que passava por ali sempre a correr, pois sabia que logo de seguida voava na sua direcção qualquer utensílio de cozinha que estivesse mais “à mão de semear”, enquanto o resto da malta, que espreitava na escada de acesso ao convés ria disfarçadamente, escondendo-se de imediato num recanto mais próximo ou dentro das baleeiras. Dizia-se também que obrigava os alunos mais novos a meterem-se dentro dos grandes panelões, obrigando-os (aos quais dava o exemplo) a lavá-los com as vassouras de baldear o convés.
Contava-se também que, quando algum oficial o repreendia por o almoço não estar lá muito bom, que no dia seguinte o bife destinado ao mesmo era batido com aqueles pés muito redondos e achatados, vingando-se assim desta forma pela repreensão que dizia ser muito injusta.
Depois do incêndio e quando todos nós fomos transferidos para Setúbal, aí convivi mais de perto com aquele cozinheiro, uma vez que necessitei dos seus conhecimentos para poder ingressar na Marinha Mercante. Com o devido respeito (pois este senhor já deve ter falecido tendo em conta a idade que já tinha naquele tempo) o “Toni da Enxóssia”, pelo que eu pude presenciar, em momentos de tranquilidade era uma pessoa muito dócil e compreensiva, denotando-se nele alguma tristeza interior que dificilmente deixava transparecer, dado que as lágrimas se misturavam com as gotas de suor que continuavam a “fazer de tempero” ao rancho geral.
Ainda hoje me recordo das últimas palavras que me dirigiu, uns dias antes de saber que eu ia embarcar no navio “Benguela”:
― Olha lá oh miúdo! ― Vás para onde fores, nunca tenhas vergonha de dizer que vieste da “Fragata” ― faz ver a esses gajos que aqui também se fazem bons homens e destemidos “Lobos-do-mar”.
Quanto ao “Cabo Borracha” (que também já deve ter falecido apesar de na altura ser mais novo do que o cozinheiro) responsável pelo Paiol dos Mantimentos e pela Fanfarra, era uma pessoa que pelo seu aspecto mais fechado se dava mais ao respeito, mais disciplinador, não admitindo qualquer tipo de confianças, onde parecia fazer questão de vincar bem as distâncias entre o “Mestre da fanfarra” e o “aprendiz de clarim”. Era esta a impressão que tinha dele, até começar a fazer a tarefa de Faxina à Praça, que de alcofa na mão o acompanhava à Praça de Setúbal para fazer as compras para o rancho dos oficiais.
A forma carinhosa, envolta em alguma elegância com que regateava com as vendedeiras os preços das hortaliças e de outros legumes em cada banca da praça, contrastava de facto com a aspereza e a rudeza com que por vezes tratava os alunos, principalmente os que faziam parte da Fanfarra e que no clarim não “davam uma para a caixa” (como era hábito dizer) e que desafinavam constantemente as notas musicais.
Por outro lado, conheci nele um outro lado mais humano, sempre pronto a ajudar quem dele necessitasse. Recordo que em dada altura, quando a minha mãe com grande sacrifício me mandou dinheiro para ir passar as férias de verão a Santarém e os perdi, foi a ele que recorri, pois já não tinha dinheiro para os transportes. Quando no natal recebi uma determinada verba por ter ganho o primeiro prémio do Concurso dos Presépios e lhe fui pagar o pequeno empréstimo, o “Cabo Borracha” não aceitou o dinheiro dizendo-me:
― Olha lá Braz! ― Se não tivesses que me pagar este dinheiro o que irias fazer com ele? ― Ao que eu lhe respondi:
― Mandava-o para a minha mãe que bem está necessitada dele ― ao que ele me respondeu de imediato parecendo um pouco emocionado:
― Então rapaz! ― Não percas mais tempo que os Correios estão prestes a fechar.
Ao “Toni da Enxóssia” e ao “Cabo Borracha”, estejam eles onde estiverem e independentemente das características de cada um, aqui fica, passados todos estes anos, esta nossa singela e justa homenagem.
Carlos Vardasca
08 de Agosto de 2011
(Braz, ex-aluno nº 14)