sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

"A nossa tripulação sofreu uma baixa"

António Grifo (também na foto em destaque) na companhia de ex-fragatas na "Assada de peixe" realizada em Lagos no dia 27 de Agosto de 2011.
António Grifo (ao centro) com 12 anos de idade, na companhia do "Alcantarilha" e do "Alfaçe".

O nosso adeus ao companheiro “Grifo”
Há coisas que não estão na nossa vontade em determinar a nossa presença entre aqueles que mais queremos, ou perpetuar a amizade que nutrimos para com os nossos amigos que caminharam por trajectos sinuosos de uma vida um pouco conturbada. A vida por vezes prega-nos inesperadamente uma partida para a qual não estamos preparados, ao ponto de nos roubar os momentos de felicidade que pensávamos viver eternamente, embora também não tivéssemos, tendo em conta as circunstâncias da vida, os cuidados em a preservar.
O nosso companheiro “Grifo”, de figura um pouco franzina mas aparentando gozar de uma felicidade transbordante, foi mais um de entre tantos os que não conseguiram transpor “aquela curva da vida”, que decide aquilo que dizem ser o nosso destino.
A vida do nosso companheiro “Grifo” foi sempre desde muito cedo muito atribulada, a partir do momento que, com apenas 13 anos de idade conseguiu transpor uma vigia e esconder-se dentro do batelão que abastecia a Fragata D. Fernando II e Glória de água e fugir daquela velha Nau, por temer represálias de um dos sargentos por lhe ter atirado à cabeça uma barra de ferro.
Desde esse dia, ninguém mais soube do paradeiro do “Grifo” dado que nunca mais regressou à instituição, sabendo-se mais tarde que foi parar a Moçambique onde se empregou nos Caminhos de Ferro de Moçambique, inicialmente como fogueiro e mais tarde como maquinista, não deixando no entanto de em ambas as profissões e durante alguns anos, de encardir os seus pulmões com a fumarada negra e espessa do carvão queimado que servia de força motriz àquelas antiquíssimas locomotivas.
Depois de alguns anos em África e de regresso a Portugal, empregou-se numa pedreira, empresa de corte e tratamento de mármores (onde trabalhava sem qualquer equipamento de protecção) o que também não era nada saudável e em nada veio a contribuir para restabelecer e regenerar o seu sistema respiratório, de onde mais tarde veio a sofrer as suas consequências.
Isto tudo para vos dizer que o nosso companheiro António Marques Santos Grifo (“Grifo”) de 66 anos de idade, nascido em 8 de Fevereiro de 1945, ex-aluno da Fragata D. Fernando II e Glória com o número 244, tendo entrado em 1955 e saído em 1959, natural de Mexilhoeira Grande, Lagos (Portimão), ex-combatente na Guerra Colonial, faleceu no passado dia 29 de Dezembro de 2011, vítima de repentina doença pulmonar.
A última vez que estive com ele foi no verão deste ano, tendo sido ele o organizador da “Assada de Peixe” no dia 27 de Agosto em Lagos, que serviu de pretexto para que os ex-fragatas residentes na zona do Algarve se encontrassem em breves momentos de convívio, onde também o saudoso “Grifo” teve a amabilidade de oferecer à minha filha Mafalda uma colecção de búzios do mar, que a mesma disse, ao saber do seu falecimento, ir continuar a preservar como prova da sua singela gratidão.
Para quem não teve conhecimento, o funeral do nosso companheiro “Grifo” realizou-se na passada Sexta-feira, dia 30 de Dezembro pelas 17,30 horas, tendo o seu corpo sido transportado para o cemitério de Lagos.
A todos os seus familiares e amigos e em nome de todos os ex-alunos da Fragata D. Fernando II e Glória, “Cesto da Gávea” envia os seus sentidos pesamos, e esteja ele onde estiver aqui fica o nosso abraço solidário.
Carlos Vardasca
(Braz, ex-aluno nº 14. 1963-1968) 
30 de Dezembro de 2011 

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Uma noite na aldeia (conto)


Já se previa um inverno rigoroso. O manto de neve que cobria todo o distrito de Chaves há muito que também branqueava os campos em redor da aldeia de Moure, o que era sempre motivo de preocupação para os seus habitantes.
Os pastos rareavam. As cabras que era hábito a Gracinda[1] levar para o pastoreio já raramente saíam do estábulo, e o telhado coberto de neve já não fumegava pelos intervalos das placas de ardósia mas apenas pela velha chaminé, onde o odor daquela sopa gordurosa juntava à mesma mesa a frágil adolescência de Gracinda e os restos de saudade que consumiam a mãe, que ainda chorava a ausência do marido em parte incerta, e a angústia de quem mal tinha forma nem como gerir os parcos dinheiros que moldavam a sua pobreza.
Bastante agasalhada, acabada de chegar do forno comunitário da aldeia onde fora buscar o pão amassado pela Ana dos Currais, fascinada por tanta iluminação e depois de transpor o arvoredo que circundava a casa de quem, sendo médico em Lisboa apenas ali vinha ficar em épocas festivas, Gracinda abeirou-se de uma das janelas e ali ficou estupefacta, contemplando maravilhada a enorme árvore de natal e um amontoado de papéis de embrulho já rasgados que se espalhavam por toda a sala, depois de terem envolvido o que era agora o fascínio das crianças daquela numerosa e abastada família.
Já passava da meia-noite e a Gracinda antes de regressar a casa ainda foi dar de comer ao gado, acariciar uma das cabras que estava prestes a ter cria e espalhar algum feno pelo chão do estábulo para o tornar ainda mais confortável para os animais, tendo tempo ainda de passar pela casa da vizinha Cordoeira, certificando-se se o lume da lareira estava apagado, aconchegar-lhe os cobertores ao corpo e fazer-lhe um pouco da companhia que à muito se viu privada desde que o marido, operário da construção civil, falecera de forma trágica num acidente de trabalho num dos bairros de Paris.
Sozinha com a mãe, no meio de quatro paredes iluminadas por uma candeia de azeite que projectava as suas sombras na rudez das pedras de granito, Gracinda olhava inerte para a lareira e para o caldeiro de onde fumegava o mesmo odor que há muito lhe dava o sustento.
Enquanto a mãe Florinda[2] ainda esbracejava num alguidar para amassar o resto da massa dos cuscurões, Gracinda, de olhos abrilhantados pelo lume da lareira, lembrava a enorme árvore de natal da casa do médico que não lhe cabia dentro do casebre, imaginando-se criança e a brincar com os brinquedos que não vira mas que idealizava bonitos, a avaliar pela beleza dos papeis de embrulho que agora jaziam amarrotados num dos caixote do lixo.
Atenta que estava aos sons que viessem do outro lado das paredes da casa, ao menor sinal que lhe soou Gracinda correu apressada para o estábulo onde se iniciara o parto de mais um caprino, ajudando ao seu nascimento, aligeirando as dificuldades da velha cabra que soltava bramidos de dor.
Exausta, e depois de ter avisado a mãe que iria ficar no estábulo nessa noite para vigiar o animal que acabara de nascer, Gracinda, sentindo-se frágil mas inundada de felicidade, enroscou-se numa velha manta e aconchegou-se junto do pequeno cabrito de quem grande parte da noite não desviou o olhar, acariciando-o com a mesma ternura como se fora um brinquedo que nunca recebera, acabando por adormecer enquanto recordava todos momentos em que nunca tivera tempo para brincar.
No dia seguinte e de regresso ao trabalho do campo na companhia da mãe, Gracinda mais uma vez acabou por verificar que afinal tudo estava tal e qual como dantes, apesar do pároco da aldeia anunciar todos os anos que o mundo iria mudar “com o nascimento do menino”.

                                                                                 
Carlos Vardasca
21 de Dezembro de 2011

In: “Tempos Inquietos 2”, páginas 63, 64. 21 de Dezembro de 2008.


[1] Gracinda da Conceição Correia Braz Vardasca (minha mãe).
[2] Florinda Correia (minha avó materna)