segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Do "Toni da Enxóssia" ao "Cabo Borracha"


Foto: O "Toni da Enxóssia" e o "Cabo Borracha" junto ao edifício da Capitania do Porto de Setúbal.
Quando entrei para a Fragata D. Fernando II e Glória tinha apenas 13 anos de idade, tendo sido muito curta a minha estadia a bordo, uma vez que entrei pelo Portaló no dia 1 e logo no dia 3 de Abril de 1963 a abandonei de uma forma tão trágica, tendo aquela “velha Nau”, última da Índias, sucumbido a um violento incêndio que a destruiu totalmente.
Por esse facto, pouco ou nada conheci sobre o cozinheiro de bordo a quem apelidaram de “Toni da Enxóssia”, mas ainda recordo algumas peripécias que os mais velhos contavam sobre ele.
De onde vem este apelido não se sabe (mas calcula-se) mas contavam os alunos mais antigos que este elemento da guarnição, personagem de estatura baixa, muito gordo e de pés muito largos e redondos, tinha o hábito (e por isso era motivo de chacota) quando na cozinha o calor era insuportável, de se pôr em tronco nu, enquanto e o seu suor corria em cascata pela sua enorme barriga a baixo para dentro das panelas, enquanto confeccionava as refeições:
Éh “Toni da Enxóssia” estás a temperar o nosso tacho com o teu suor? Dizia um dos alunos que passava por ali sempre a correr, pois sabia que logo de seguida voava na sua direcção qualquer utensílio de cozinha que estivesse mais “à mão de semear”, enquanto o resto da malta, que espreitava na escada de acesso ao convés ria disfarçadamente, escondendo-se de imediato num recanto mais próximo ou dentro das baleeiras. Dizia-se também que obrigava os alunos mais novos a meterem-se dentro dos grandes panelões, obrigando-os (aos quais dava o exemplo) a lavá-los com as vassouras de baldear o convés.
Contava-se também que, quando algum oficial o repreendia por o almoço não estar lá muito bom, que no dia seguinte o bife destinado ao mesmo era batido com aqueles pés muito redondos e achatados, vingando-se assim desta forma pela repreensão que dizia ser muito injusta.
Depois do incêndio e quando todos nós fomos transferidos para Setúbal, aí convivi mais de perto com aquele cozinheiro, uma vez que necessitei dos seus conhecimentos para poder ingressar na Marinha Mercante. Com o devido respeito (pois este senhor já deve ter falecido tendo em conta a idade que já tinha naquele tempo) o “Toni da Enxóssia”, pelo que eu pude presenciar, em momentos de tranquilidade era uma pessoa muito dócil e compreensiva, denotando-se nele alguma tristeza interior que dificilmente deixava transparecer, dado que as lágrimas se misturavam com as gotas de suor que continuavam a “fazer de tempero” ao rancho geral.
Ainda hoje me recordo das últimas palavras que me dirigiu, uns dias antes de saber que eu ia embarcar no navio “Benguela”:
Olha lá oh miúdo! Vás para onde fores, nunca tenhas vergonha de dizer que vieste da “Fragata” faz ver a esses gajos que aqui também se fazem bons homens e destemidos “Lobos-do-mar”.
Quanto ao “Cabo Borracha” (que também já deve ter falecido apesar de na altura ser mais novo do que o cozinheiro) responsável pelo Paiol dos Mantimentos e pela Fanfarra, era uma pessoa que pelo seu aspecto mais fechado se dava mais ao respeito, mais disciplinador, não admitindo qualquer tipo de confianças, onde parecia fazer questão de vincar bem as distâncias entre o “Mestre da fanfarra” e o “aprendiz de clarim”. Era esta a impressão que tinha dele, até começar a fazer a tarefa de Faxina à Praça, que de alcofa na mão o acompanhava à Praça de Setúbal para fazer as compras para o rancho dos oficiais.
A forma carinhosa, envolta em alguma elegância com que regateava com as vendedeiras os preços das hortaliças e de outros legumes em cada banca da praça, contrastava de facto com a aspereza e a rudeza com que por vezes tratava os alunos, principalmente os que faziam parte da Fanfarra e que no clarim não “davam uma para a caixa” (como era hábito dizer) e que desafinavam constantemente as notas musicais.
Por outro lado, conheci nele um outro lado mais humano, sempre pronto a ajudar quem dele necessitasse. Recordo que em dada altura, quando a minha mãe com grande sacrifício me mandou dinheiro para ir passar as férias de verão a Santarém e os perdi, foi a ele que recorri, pois já não tinha dinheiro para os transportes. Quando no natal recebi uma determinada verba por ter ganho o primeiro prémio do Concurso dos Presépios e lhe fui pagar o pequeno empréstimo, o “Cabo Borracha” não aceitou o dinheiro dizendo-me:
Olha lá Braz! Se não tivesses que me pagar este dinheiro o que irias fazer com ele? Ao que eu lhe respondi:
Mandava-o para a minha mãe que bem está necessitada dele ao que ele me respondeu de imediato parecendo um pouco emocionado:
Então rapaz! Não percas mais tempo que os Correios estão prestes a fechar.
Ao “Toni da Enxóssia” e ao “Cabo Borracha”, estejam eles onde estiverem e independentemente das características de cada um, aqui fica, passados todos estes anos, esta nossa singela e justa homenagem.
   Carlos Vardasca
08 de Agosto de 2011
(Braz, ex-aluno nº 14)

domingo, 7 de agosto de 2011

Relato da última visita feita à Fragata D. Fernando II e Glória pelo Almirante António Andrade e Silva

Pelo princípio de Abril recebi um telefonema do Almirante Andrade e Silva expressando o seu interesse em visitar a Fragata D. Fernando II e Glória, durante um fim-de-semana.
A visita iria ser realizada acompanhado pela sua família e amigos.
Como era sempre sua preocupação fez questão de referir, mais uma vez, que não me preocupasse, dispensava-me de estar presente pois, tratando-se de um fim-de-semana, não queria incomodar-me.
O nosso conhecimento pessoal já vinha de longe desde os tempos em que, como Capitão de Fragata, tinha estado em diligência na Escola de Fuzileiros e me tinha solicitado, como Oficial Averiguante, apoio técnico para um delicado e complexo Processo de Averiguações, em 1976.
Assim, com os amarelos bem polidos, o convés e demais pavimentos a condizer, e com o pessoal de serviço, o Contra Mestre e eu próprio, fardados a rigor, recebemos naquele Sábado, pouco depois da 10.00h da manhã, um distinto grupo de visitantes.
A comitiva era de cerca de 16 pessoas tendo eu constatado que muitos dos seus elementos tinham sido “Mecenas” da Fragata. Os seus nomes figuravam no respectivo Livro de registo entre as mais de 470 individualidades que tinham contribuído monetariamente para que este navio fosse reconstruído.
A Fragata era a todos eles muito familiar.
Com efeito, o Almirante Andrade e Silva, no seu tradicional e belo veleiro, “O Vadio”, herdado já de seu pai e ainda com os seus filhos muito jovens, costumava rumar ao “Mar da Palha” para aí visitar o que restava da bela Fragata, após o incêndio que a tinha devorado em boa parte naquele dia 3 de Abril de 1963.
A ela atracava a embarcação e os mais novos penetravam no seu interior, ou simplesmente desfrutavam das águas circundantes até à hora do regresso a casa.
Das histórias contadas pelo Almirante aos seus filhos para os motivar para o passeio, constavam as referências à “Carreira da Índia” e ao local (Damão) onde a Fragata havia sido construída e daí que o mais novo, o Tiago, confundido com tantas referências históricas, e ajudado pela sua fértil imaginação de criança, tivesse chegado a pensar que àquele longínquo território já tinha ido.
Muitos anos mais tarde, toda a família tinha feito a bordo a viagem de Aveiro para o Alfeite, após terem terminado os trabalhos nos estaleiros da Ria Marine.
Um dos mais novos da comitiva visitante, o neto, Tomás Andrade e Silva, agora com dez anos de idade, tinha sido feito “Mecenas” 15 dias após ter nascido.
A reconstrução deste navio tinha sido e continuava a ser entre os Projectos sonhados e levados a bom termo pelo Almirante, talvez o mais querido e mais desejado mas nem por isso o mais fácil de concretizar, como é sabido.
Enquanto percorríamos as diferentes partes do navio, o Senhor Almirante ia descrevendo em pormenor e com visível agrado, a proveniência de cada um dos objectos e a forma como os tinha conseguido obter.
Muitas das peças, nomeadamente da Sala de Jantar, Sala de Estar e Camarote do Comandante, tinham sido oferecidas por pessoas da sua família ou amigos muito chegados.
Os copos em cristal, os guardanapos e respectivas argolas em prata, as toalhas de linho bordadas, os livros antigos da biblioteca, o mobiliário, tudo ou quase tudo estava intimamente ligado ao Almirante Andrade e Silva.
Eu limitava-me a ouvir com toda a atenção as suas memórias e explicações, com receio de perder em algum momento aquelas preciosas referências.
Descendo à Coberta foi a vez do filho Tiago recordar que as feições de um dos manequins da Sala de Oficiais eram decalcadas das suas e que a figura da única mulher a bordo tinha as feições da sua irmã, a Sofia.
Um dos momentos mais interessantes e curiosos estava no entanto para chegar pois aproximávamo-nos da enfermaria e do manequim do “Médico” de bordo cujas feições sempre me tinham parecido familiares.
O Senhor Almirante surpreendeu-me perguntando-me se era possível tirar uma fotografia ao lado daquele manequim; claro que de imediato dei ordens para abrirem a placa de vidro que protege aquele espaço museológico e, como o manequim ostenta uns óculos redondos, à época, perguntei-lhe se não queria colocar também ele um antigo “Pince-nez” .
O Almirante com toda a sua jovialidade “alinhou” na brincadeira e, usando o velho “Pince-nez”, que tinha sido trazido à nossa presença num ápice, colocou-se ao lado do manequim imitando a sua atitude gestual para uma fotografia tirada pelo seu filho e que, para além de imperdível, me desvendou o mistério, a cara do manequim era exactamente a cara do Senhor Almirante. Até ali ele tinha deixado a sua marca, tendo-se sujeitado a uma penosa acção de cópia da sua face para a realização do respectivo molde.
Quando subimos ao convés para terminar a visita, o Senhor Almirante abeirou-se do Mastro Grande e chamando o seu neto Tomás disse-lhe: “ Tomás leia o que está escrito nesta placa” e o Tomás passou a ler pausadamente -Ao Almirante António Manuel de Andrade e Silva homenagem pelo sonho que tornou realidade nesta fragata restaurada - Abril 1998 - Marinha de Guerra Portuguesa
Todos nós estávamos emocionados. Era por assim dizer uma passagem de testemunho emocional e afectivo em relação a uma obra que lhe havia sido especialmente cara.
O Almirante ficou então imóvel. Seria apenas a emoção do momento?
Talvez tenha sido, também. O certo é que de seguida confessou que uma vertigem o tinha acometido. A debilidade física causada pelos muitos tratamentos médicos a que se tinha vindo a sujeitar e talvez as emoções vividas naquela manhã, apareciam neste momento a toldar um pouco o final da visita.
Despediu-se de nós militares no fim da prancha tendo-se para tal libertado dos braços dos familiares que o amparavam.
Ali estava ele Marinheiro, como sempre, a responder, apesar do seu mau estar, ao cumprimento de despedida.
Uma hora depois telefonou-me a agradecer a visita e a dizer-me que não me preocupasse pois o seu estado de saúde tinha melhorado.
Infelizmente, um mês e meio depois de se ter despedido deste seu sonho, despedia-se também da vida, deixando em todos nós um grande sentimento de perda.
Num calendário de bordo, na parte museológica, passou a figurar uma data, 29 de Maio, para que não nos esqueçamos do dia em que partiu para navegar naquele outro mar distante na viagem que agora iniciou…
Sei que encontrará bons ventos e mar de feição. Até sempre.
(A família e todos os seus amigos encontrarão decerto consolo na memória que perdura… a de um grande Senhor, grande Marinheiro e invulgar ser humano, com quem tivemos o privilégio e a honra de conviver).
José António de Oliveira e Abreu
Capitão de Mar e Guerra (Fuzileiro)
Actual Comandante da
Fragata D. Fernando II e Glória
2008